Simulador miocutâneo para o aprendizado de suturas

Revista Agrária Acadêmica

Agrarian Academic Journal

Volume 3 – Número 6 – Nov/Dez (2020) 

doi: 10.32406/v3n62020/136-147/agrariacad

 

Simulador miocutâneo para o aprendizado de suturas. Myocutaneous simulator for learning suture. 

 

Matheus Barbosa Gomes Cruz1, Carolina Trochmann Cordeiro2, Lidiane de Jesus Silva3, Simone Tostes de Oliveira Stedile4

 

1- Departamento de Medicina Veterinária, Universidade Federal do Paraná – UFPR – Curitiba/PR – BRASIL mbgcruz@gmail.com

2- Departamento de Medicina Veterinária, Universidade Federal do Paraná – UFPR – Curitiba/PR – BRASIL caroltrochmann@gmail.com

3- Departamento de Medicina Veterinária, Universidade Federal do Paraná – UFPR – Curitiba/PR – BRASIL lidi.silva@gmail.com

4- Departamento de Medicina Veterinária, Universidade Federal do Paraná – UFPR – Curitiba/PR – BRASIL tostesimone@gmail.com

 

 

Resumo

              

O objetivo deste estudo foi avaliar um simulador para treinamento de suturas, constituído por três camadas simulando pele, subcutâneo e musculatura. Participaram do estudo professores e alunos de diferentes instituições de ensino de Medicina Veterinária e suas opiniões foram registradas em questionários em escala Likert, abordando questões sobre incisão e suturas de cada camada, bem como sua possível utilização em aulas práticas. As respostas foram avaliadas por meio da Validação de Conteúdo Diagnóstica (VCD) em que valores acima de 0,50 representavam aceitação ao simulador.  Todos os professores concordaram (VCD=0,96) e muitos alunos também (VCD=0,90) com a aplicabilidade do simulador, sendo considerado satisfatório para o treinamento dos principais tipos de suturas.

Palavras-chave: Cirurgia. Ensino. Flapes. métodos alternativos.

 

Abstract

 

The aim of this study was to evaluate a simulator for suture training, which is composed by three layers that simulates skin, subcutaneous and a muscle. Teachers and undergraduates from different veterinary medicine universities were tested the simulator, and their opinions were registered by a Likert scale questionnaire, asking about incision and suture, and about the possibility to introduce the simulator in the practical classes. The answers were evaluated based on the Diagnostic Contend Validation (DCV), wherein values above 0,50 represents acceptance to the simulator. All the professors agree (DCV=0,96) and also many students (DCV=0,90) that the simulator is applicable and was considered satisfactory for the training of the main sutures learned on the Surgical Technique classes.

Keywords: Alternative methods. Flaps. Surgery. Teaching.

 

 

Introdução

 

 

O uso de animais no ensino da Medicina Veterinária é amplamente questionado dentro das universidades, tanto por alunos quanto por professores. Tal questionamento é intensificado frente ao conhecimento dos alunos sobre o direito da objeção de consciência, o qual impede que um indivíduo seja obrigado a realizar alguma ação que seja contra sua convicção filosófica, moral ou religiosa, exceto quando ordenado por lei (BRASIL, 1988, p. 13). Outro fator que reforça essa discussão é o aumento gradativo de alternativas ao uso de animais disponíveis nas diversas áreas de estudo (BACHINSKI et al., 2015, p. 2; LEITE et al., 2016, p. 68; SILVA et al., 2016, p. 95; CARNIATTO, 2017, p. 446).

Entende-se por métodos alternativos ao uso de animais no ensino todas as técnicas utilizadas para que o sofrimento animal seja diminuído. Para este propósito é utilizado o conceito dos 3 R`s, inicialmente desenvolvido para os procedimentos de experimentação animal: reduction (redução), que se refere à redução do número de animais utilizados, refinement (refinamento), que tem o conceito de melhoramentos das técnicas empregadas, para menor sofrimento dos animais ainda utilizados, e replacement (substituição), que tem o objetivo de substituir os animais sempre que possível (RUSSELL; BURCH, 1959, p. 64; SILVA; SANTORI; MIRANDA, 2016, p. 93). A justiça brasileira também indica a utilização racional dos animais através da Lei Arouca (BRASIL, 2008, p. 1), que estabelece a necessidade do uso dos 3R’s pelas instituições de pesquisa e ensino do país, além do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal – CONCEA, que publicou a Orientação Técnica n°9 em 18 de agosto de 2016, a qual orienta, no âmbito da cirurgia, sobre o uso de animais vivos apenas após o treinamento em cadáveres durante as aulas de técnica cirúrgica (CONCEA, 2016, p. 4). Desta forma, entende-se que todas as modalidades de treinamento ético que melhorem a performance do aluno antes da realização cirúrgica em um animal vivo são benéficas. O uso de materiais sintéticos (simuladores) vem a somar com a legislação e a orientação do CONCEA.

No ensino da cirurgia veterinária, área que tradicionalmente envolve o uso de animais, os simuladores comerciais existentes tornam-se de difícil acesso à grande parte das instituições nacionais, devido aos custos envolvidos em sua aquisição. Como alternativa aos métodos comerciais tem-se a possibilidade de confecções “caseiras” de simuladores, com os mais diversos materiais existentes, baseado nos conceitos de fidelidade e discriminação, no qual a fidelidade consiste na avaliação da semelhança visual de um simulador com um animal vivo, enquanto a discriminação avalia a semelhança de características específicas de um método em relação a um animal vivo para a realização de um determinado objetivo (BALLS, 2013, p. 12) Os cadáveres éticos preservados, ou que foram a óbito há pouco tempo, também são utilizados como alternativa aos animais vivos, estes com a vantagem de possuírem a maior fidelidade e discriminação possível (SILVA et al, 2004, p. 1). Torna-se possível ainda a utilização de vegetais para o treinamento das suturas, como uma alternativa de baixo custo (COSTA-NETO et al, 2020, p. 10).  

Uma etapa extremamente importante do aprendizado de um cirurgião é o treinamento de suturas, base de qualquer procedimento a ser realizado. Para o desenvolvimento dessas habilidades, existem simuladores comerciais disponíveis, que apresentam uma a três camadas, e com preço unitário variando entre R$ 130,00 e 250,00 reais. Também existem simuladores de confecção artesanal, descritos em alguns estudos e apresentando níveis de discriminação e fidelidade variados (BASTOS; SILVA, 2011, p. 150; COSTA-NETO, 2012, p. 2 ; OLIVEIRA; FARIA, 2019, p. 4).

Para que o simulador de sutura se aproxime do real, é relevante que o mesmo apresente camadas, permitindo três planos de sutura, referentes à pele, subcutâneo e musculatura. É interessante que essas camadas sejam próximas ao real também em relação à textura, consistência e elasticidade.

O objetivo deste estudo foi avaliar um simulador para treinamento de sutura com três camadas (miocutâneo), de confecção própria, para verificar a aceitação do seu uso por professores e alunos do curso de Medicina Veterinária.

 

Material e Métodos

 

Para o simulador de sutura, foram confeccionadas três camadas que representassem a pele, subcutâneo e musculatura, com o objetivo de elucidar um acesso ao abdômen. Foram utilizados elastômeros de silicone de diferentes densidades (1.07 a 1,35 g/cc), flexibilidades (alta a média), viscosidades (baixa a alta) e durezas (Shore A 00-30 a 19), para que cada camada se aproximasse em elasticidade, densidade e resistência da pele, subcutâneo e musculatura frente à incisão, manipulação e confecção de suturas. Em cada camada foi adicionado tecido elástico de elastano e algodão, que servisse de sustentação para sutura. Com o intuito do aumento de fidelidade foram adicionados corantes para que cada camada se aproximasse, em coloração, aos respectivos tecidos simulados (Figura 1).  

 

Figura 1 – Simulador miocutâneo 10x10cm para treinamento de suturas, com visualização das três camadas, correspondentes a pele, subcutâneo e musculatura.

 

 

Como método de validação do simulador, seis professores cirurgiões veterinários, de diferentes instituições de ensino, foram convidados a testar o modelo e opinar sobre o mesmo, para que fossem realizadas possíveis melhorias antes da utilização em aula pelos alunos. Foi solicitado que os professores executassem diversos padrões de suturas isolados e contínuos nas três camadas do simulador, abrangendo suturas de eversão (wolff, donnati), aposição (isolado simples, swift, sultan, contínuo simples, reverdin), inversão (gelly, lembert, cushing, colchoeiro, schmiden) e sobreposição (mayo). Para a validação, os professores usaram vários tipos de fios e agulhas, conforme julgaram necessário para testar o simulador, dentre eles o ácido poliglicólico 3-0, 2-0 e 0 com agulhas traumáticas e atraumáticas, nylon 3-0 e 2-0 com agulhas traumáticas, poliglecaprone 3-0 com agulha atraumática e nylon não cirúrgico agulhado com agulha hipodérmica 25×0,7mm.  Os professores sugeriram alguns ajustes e, após as modificações sugeridas, os mesmos testaram novamente o modelo e responderam a um questionário. Este era separado em duas partes, sendo a primeira sobre avaliações estruturais do simulador, com questões sobre a proximidade com animal vivo em consistência, elasticidade e textura tanto durante manipulação manual quanto durante a incisão de cada camada e confecção de suturas interrompidas e contínuas. A segunda parte questionava sobre avaliações de aceitação do simulador, sobre o nível de eficiência para treinamento de suturas em cada camada, se seria um simulador viável para aplicação no ensino e sobre o interesse de cada professor em utilizar tal simulador em suas aulas práticas. O questionário finalizava com questões sobre preferências de métodos de ensino de cada professor no treino de suturas (simulador, cadáver ou animal vivo) e espaço para comentários, críticas e sugestões de cada professor sobre o simulador. O questionário foi composto por questões em escala Likert contendo 5 alternativas, desde “discordo fortemente” até “concordo fortemente”, e questões abertas.

Após a validação pelos professores, o simulador foi utilizado por uma turma de 20 alunos da disciplina de Técnica Cirúrgica do curso de Medicina Veterinária. Os alunos não possuíam treinamento prévio, sendo esta sua primeira aula prática de suturas. Além do simulador já descrito, os alunos treinaram também em bastidores de tecido de algodão, método tradicionalmente utilizado no currículo deste curso, utilizando fio de nylon não cirúrgico agulhado com agulha hipodérmica 25×0,7mm. Foram utilizados, tanto no simulador quanto no bastidor, os seguintes pontos: interrompido simples, sultan, swift, wolff, donnati, gelly e lembert. Ao final da aula, os alunos responderam um questionário anônimo. As questões eram referentes ao nível de satisfação com o uso do modelo durante a aula prática, sobre o aumento da segurança para realização de procedimentos futuramente, sobre sua impressão ao utilizar o simulador ao invés de animais vivos ou cadáveres durante a aula, além de questões sobre o interesse em continuar utilizando o simulador durantes as aulas práticas e o interesse em poder utilizá-los fora do ambiente acadêmico. Assim como no questionário para os professores, o questionário para os alunos também foi aplicado em escala Likert de 5 opções. Para finalização do questionário foi realizada uma pergunta aberta sobre a preferência de cada aluno em utilizar este método em relação ao uso de animais vivos, cadáveres ou bastidores de tecido.

Após aplicação dos questionários, os dados foram submetidos à análise estatística para avaliação dos resultados, utilizando o método de Validação de Conteúdo Diagnóstica (VCD) (FEHRING, 1987, p. 3). Neste método atribui-se valores de 0 a 1 correspondentes às respostas de cada questão, sendo 0 referente à opção “discordo completamente”, 0,25 para “discordo”, 0,50 para “não concordo e nem discordo”, 0,75 à opção “concordo” e 1 à opção “concordo completamente”, para então ser realizada a média ponderada com a frequência de ocorrências de cada opção para cada atributo. O valor obtido desta média é denominado escore, ou VCD. Portanto quanto mais próximo de 1 estiver o VCD de determinado atributo, maior é a aceitação do simulador na avaliação, sendo o VCD de 0,50 o valor base para consideração positiva de determinada característica e a partir de 0,80 são considerados valores extremamente significativos (majoritários).

 

Resultados e Discussão

 

A primeira e a segunda camadas foram consideradas próximas a uma pele e subcutâneo reais, com VCD geral, dos atributos questionados, de 0,77 para a primeira camada e 0,71 para a segunda.

Diante os critérios avaliados, as sensações ao toque e manipulação, e confecção do nó de sutura foram as melhores características da primeira camada com VCD=0,79 e VCD=0,83, respectivamente, enquanto a segunda camada foi melhor avaliada na passagem do fio e agulha (VCD= 0,71) e confecção do nó (VCD=0,79). O atributo que menos agradou os professores na primeira camada foi a elasticidade da pele durante a passagem da agulha e fio de suturas, com VCD=0,71 para o atributo. A segunda camada obteve menor classificação na sensação à incisão e cortes com tesoura, para o qual o VCD individual foi 0,67 (Gráfico 1).

 

Gráfico 1 – Resultados da avaliação dos professores sobre textura, elasticidade e resistência e das sensações de incisão, passagem da agulha e fio e confecção do nó de sutura em cada camada do simulador miocutâneo. Foi utilizado o cálculo de Validação de Conteúdo Diagnóstica (VCD) para escala Likert, que continha 5 alternativas para cada questão, sendo 0 “discordo fortemente” e 1 “concordo fortemente”.

 

O teste de validação do simulador pelos professores não foi limitado sobre quais procedimentos deveriam ser realizados, o que favoreceu a exploração do simulador de diversas maneiras. Diante a discriminação em elasticidade e resistência alcançadas pelas primeira e segunda camadas, tornou-se possível o treinamento de técnicas de flapes usadas em cirurgias reconstrutivas. Os Procedimentos realizados foram H plastia (Figura 2), Z plastia (Figura 3), Y-V plastia (Figura 4) e flapes de avanço (Figura 5). Outros procedimentos executados foram o treinamento de biopsias com punch (Figura 6) e a implantação de drenos (Figura 7).

 

Figura 2 – Demonstração da técnica de H-plastia no simulador miocutâneo, mostrando a técnica de incisão (à esquerda) e de aproximação e sutura (à direita).

 

Figura 3 – Demonstração da técnica de Z-plastia no simulador miocutâneo, mostrando a técnica de incisão (à esquerda) e de aproximação e sutura (à direita).

 

Figura 4 – Demonstração da técnica de V-Y-plastia no simulador miocutâneo, mostrando a técnica de incisão (à esquerda) e de aproximação e sutura (à direita).

 

Figura 5 – Demonstração da técnica do flape de avanço no simulador miocutâneo, mostrando a técnica de incisão (à esquerda) e de aproximação e sutura (à direita).

 

Figura 6 – Demonstração de biopsia com punch no simulador miocutâneo. À esquerda observa-se o orifício correspondente à retirada de um fragmento de pele e subcutâneo com punch sem lesionar a musculatura, bem como outros dois locais nos quais foi feita a biopsia, já suturados. À direita observa-se o fragmento de biopsia, apresentando as três camadas (pele, subcutâneo e musculatura).

 

Figura 7 –  Demonstração de implantação de dreno no simulador miocutâneo. À esquerda, o dreno sendo conduzido com uma pinça hemostática, no subcutâneo. À direita, o dreno já posicionado, e a sutura chinesa.

 

 

Para o uso no treino de cirurgias reconstrutivas foi sugerido, pelos professores, a confecção de simuladores com dimensões maiores aos que foram apresentados para o treino de suturas, de 10×10 cm. Esta se torna uma possibilidade inovadora para o treinamento de cirurgias reconstrutivas e biópsias, uma vez que comumente estas práticas tinham como opção apenas o cadáver conservado (TAN et al., 2018, p. 250).

A terceira camada foi considerada próxima o suficiente, nos atributos questionados, a uma musculatura, com um VCD de 0,63. A elasticidade e textura da camada (VCD=0,58) e a sensação à incisão e cortes com tesoura (VCD= 0,62) foram os aspectos que menos se assemelhavam ao real.

Ao serem questionados sobre a eficiência de cada camada para o ensino das técnicas de diérese e síntese, todos os professores concordaram em relação à primeira e segunda camadas, resultando em ambas com um VCD de 0,87. A terceira camada ainda foi considerada aceitável para treinamento, com VCD= 0,71. Foi obtido VCD 0,96 para os questionamentos sobre a aplicabilidade do simulador nas instituições de ensino e sobre o interesse dos professores em utilizar o mesmo nas aulas de Técnica Cirúrgica (Gráficos 2 e 3).

 

Gráfico 2 – Resultado da avaliação dos professores sobre a eficiência de cada camada para o treinamento se suturas. Foi utilizado o cálculo de Validação de Conteúdo Diagnóstica (VCD) para escala Likert, que continha 5 alternativas para cada questão, sendo 0 “discordo fortemente” e 1 “concordo fortemente”.

 

Gráfico 3 – Resultado da avaliação dos professores sobre a viabilidade e interesse no uso do simulador miocutâneo em aulas práticas de técnica cirúrgica. Foi utilizado o cálculo de Validação de Conteúdo Diagnóstica (VCD) para escala Likert, que continha 5 alternativas para cada questão, sendo 0 “discordo fortemente” e 1 “concordo fortemente”.

 

Apesar dos atributos da terceira camada não serem tão próximos ao real como as outras duas camadas, o simulador foi considerado eficiente para o treinamento inicial dos alunos nas técnicas de sutura, baseado nos padrões de sutura testados, o que sugere que esta baixa discriminação não é um fator significativo para o treinamento inicial dos padrões de sutura, como sugeridos por outros simuladores de menor discriminação (BASTOS; SILVA, 2011, p. 151; COSTA-NETO, 2012, p. 3).

Ao serem questionados sobre a preferência por algum método de ensino, a maioria dos professores considerou necessário o uso tanto de modelos, como de cadáveres e animais vivos, de acordo com a evolução do aprendizado. As principais críticas foram referentes à melhora de discriminação da terceira camada para que se aproximasse mais de uma musculatura real, a qual se rompe diante a tensão aumentada durante o nó de sutura e tem o acesso dificultado pela segunda camada; e sugeriram também o desenvolvimento de um suporte convexo para o apoio do simulador durante o seu uso. Alguns professores utilizaram mais de um tipo de fio no simulador (nylon, poligalactina, poliglecaprone e polidioxanona), assim como utilizaram tanto agulhas traumáticas como atraumáticas. Os professores notaram que as características do simulador se tornavam mais próximas ou não a um animal vivo, dependendo de qual fio e agulha estivessem usando, o que foi considerado uma limitação do estudo por dificultar a avaliação do simulador.

Nos comentários, os professores demonstraram grande entusiasmo pelo desenvolvimento do modelo e incluíram inclusive sugestões para o desenvolvimento de outros tipos de simuladores. Apesar dos aspectos avaliados não atingirem a semelhança máxima ao real, o simulador foi considerado útil para o aprendizado das técnicas de incisão e suturas durante as aulas de técnica operatória. Além disso, as altas discriminações obtidas pelo simulador miocutâneo na primeira e secunda camada (pele e subcutâneo, respectivamente) foram, exatamente, os fatores que possibilitaram sua maior versatilidade, como o treinamento de cirurgias reconstrutivas e implantações de drenos. Pode-se sugerir, então, que a discriminação de características específicas para o objetivo proposto se torna mais importante do que a fidelidade, assim como evidenciado por Tinbergen e Perdeck (1950, p. 37).

Após esta etapa de validação pelos professores, o simulador proposto neste trabalho foi utilizado por 20 alunos da disciplina de Técnica Operatória de Medicina Veterinária. Segundo a avaliação do VCD de cada questão foi possível constatar que os alunos consideraram o simulador muito satisfatório para o treinamento das técnicas de suturas realizadas em aula (VCD=0,83), assim como o aumento na segurança proporcionada para a realização futura das técnicas em um animal vivo (VCD=0,78). Estes dados corroboram com os resultados obtidos do simulador de sutura desenvolvido por Dorman (2009, p. 626).

Apesar de alguns alunos não concordarem com a possibilidade de o simulador substituir o treinamento inicial em animais vivos (n=3, 15%) e cadáveres (n=6, 30%), a aceitação pela substituição foi citada pela maioria em ambas a opções, obtendo VCD=0,75 e VCD=0,57, respectivamente. A justificativa dos alunos que prefeririam treinar em animais vivos foi ter a experiência direta de uma situação real. Segundo um estudo sistemático desenvolvido por Patronek; Rauch (2007, p. 38), o qual compila 17 estudos que comparam o uso de métodos alternativos ao ensino tradicional com uso prejudicial ou terminal de animais (animais vivos submetidos à eutanásia ao término do procedimento), todos os estudos apresentaram equivalência ou superioridade no ensino com uso de métodos alternativos. Tal constatação sugere que não há a necessidade do uso de animais vivos durante o ensino das técnicas de sutura para que o aluno tenha um aprendizado de qualidade.

Esta constatação é reforçada ainda pela orientação técnica n°9, emitida pelo CONCEA em 18/08/2016, a qual exige o treinamento em um método alternativo previamente ao animal vivo para o ensino da técnica cirúrgica. O interesse em utilizar o simulador durante as aulas práticas (VCD=0,90) e o interesse em adquirir um modelo para treinamento fora do ambiente acadêmico (VCD=0,89) foram fortemente demonstrados por todos os alunos (Gráfico 4).

 

Gráfico 4 – Resultados da avaliação dos alunos sobre o uso do simulador miocutâneo para treinamento das suturas. Foi utilizado o cálculo de Validação de Conteúdo Diagnóstica (VCD) para escala Likert, que continha 5 alternativas para cada questão, sendo 0 “discordo fortemente” e 1 “concordo fortemente”.

 

Na questão aberta sobre preferência dos alunos em relação aos métodos de ensino utilizado (simulador, bastidor, cadáver ou animal vivo), o mais comentado foi o simulador, devido à sua praticidade, possibilidade de treinamento em casa e reuso por longo tempo; e em segundo lugar de preferência, o cadáver, devido à maior proximidade a um animal vivo e da presença das outras estruturas do corpo. Diversos comentários discorreram também sobre a utilização de cadáveres e simuladores em etapas diferentes do ensino. Nenhum aluno optou pelo bastidor como preferência de treinamento, havendo comentários favoráveis ao simulador pela maior fidelidade e discriminação em relação ao tecido. Uma grande vantagem do simulador é a opção do treinamento fora de laboratórios ou centros cirúrgicos, situação inviável com animais vivos e cadáveres. Esta opção se torna favorável para os alunos, que podem treinar maior número de vezes e melhorarem suas habilidades, também utilizando as aulas para esclarecimento de dúvidas originadas dos treinos fora da instituição, assim como evidenciado por Costa-Neto (2012, p. 3) sobre bastidores de tecido e por Bastos (2011, p. 151) sobre seu modelo de EVA.  Para professores, o simulador também se torna interessante, uma vez que podem realizar aulas práticas na sala de aula convencional, além de não necessitar dos cuidados para conservação de cadáveres, como congelamento, aplicação da Solução de Larssen modificada , formol ou glicerina (SILVA et al, 2004, p. 606; TUDURY et al, 2009, p. 94; KARAM et al, 2016, p. 672).

Para estas técnicas de conservação terem caráter satisfatório é necessário infraestrutura e treinamento de pessoal para realização das mesmas, o que demanda também maior tempo, cuidados para a preparação de cada aula que os utilizem e maior custo de manutenção.  Ao se avaliar os valores de venda dos simuladores comerciais, (descritos acima) torna-se vantagem o custo do simulador apresentado neste estudo, o qual estima-se abaixo de R$100,00 reais para aquisição dos alunos, valor inferior a todos os citados anteriormente.

Outra importância da utilização dos modelos se dá no desenvolvimento do pensamento ético dos alunos sobre o uso do animal (TUDURY, 2009, p. 93). Ao utilizar os métodos alternativos, o aluno deixa de passar pela insensibilização, que tradicionalmente ocorre, diante do uso dos animais vivos. Assim, os alunos desenvolvem a consciência de que os animais utilizados são seres vivos sencientes, inclusive já sendo protegidos judicialmente por leis específicas para crimes contra animais. (CARNIATTO, 2017, p. 445).

O simulador não tem o objetivo de substituir por completo o uso dos animais, mas ser um instrumento para treinamento das habilidades iniciais de suturas antes da realização dos procedimentos cirúrgicos em um animal vivo, diminuindo a incidência de erros. Desta maneira, o simulador respeita ainda a educação humanitária e o princípio dos 3Rs, ao se reduzir o número de animais utilizados para o treinamento das habilidades cirúrgicas e ao refinar as habilidades dos alunos, resultando em menor sofrimento animal.

 

Conclusão

 

O simulador miocutâneo foi aceito tanto por professores quanto por alunos da medicina veterinária, portanto se mostra satisfatório para o treinamento e aprendizado de suturas.

 

Conflito de interesse

 

Os autores deste estudo não possuem conflitos de interesse de qualquer natureza manifestada.

                             

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Recebido em 18 de outubro de 2020

Retornado para ajustes em 30 de novembro de 2020

Recebido com ajustes em 1 de dezembro de 2020

Aceito em 12 de janeiro de 2021