Tratamento conservativo de Genu recurvatum bilateral em cão – relato de caso

Revista Agrária Acadêmica

Agrarian Academic Journal

Volume 4 – Número 1 – Jan/Fev (2021)

doi: 10.32406/v4n12021/77-83/agrariacad

 

Tratamento conservativo de Genu recurvatum bilateral em cão – relato de caso. Conservative treatment of Genu recurvatum bilateral in dog – case report.

 

Lygia Silva Galeno1*, Thiago Martins Souza2, Alex Cardoso de Melo2, Bruno Martins Araújo3, Tiago Barbalho Lima4

 

1*- Programa de Pós Graduação em Ciência Animal, Universidade Estadual do Maranhão (PPGCA-UEMA), São Luís, MA, Brasil. E-mail: lygiagaleno@outlook.com.
2- Programa de Pós-Graduação em Medicina Veterinária, Hospital Veterinário Universitário, Universidade Federal do Piauí (HVU-UFPI), Teresina, PI, Brasil. E-mail: thiagomartins.27@hotmail.com, alex_cod@hotmail.com.
3- Hospital Veterinário Universitário, Universidade Federal do Piauí (HVU-UFPI), Teresina, PI, Brasil. E-mail: bmaraujo85@hotmail.com.
4- Departamento das Clínicas, Universidade Estadual do Maranhão, São Luís, MA, Brasil. E-mail: barbalho.tiago@gmail.com.
 

 

Resumo

 

Relata-se o caso de um cão, 2 meses de idade, que apresentava hiperextensão dos membros pélvicos e impossibilidade de flexão articular desde o nascimento. Com base nos achados clínicos e dos exames complementares estabeleceu-se o diagnóstico de Genu recurvatum, a partir do qual, mediante os sinais clínicos moderados, optou-se pelo tratamento conservativo que consistiu na realização de imobilização que eram trocadas a cada quatro dias. O paciente obteve recuperação funcional dos membros com 12 dias de bandagem, tendo um resultado favorável, pois restabeleceu a funcionalidade dos membros. O conhecimento adequado da técnica de confecção da bandagem é importante para o sucesso do tratamento e para evitar complicações relacionadas à imobilização.

Palavras-chave: Imobilização. Hiperextensão. Membro pélvico.

 

 

Abstract

 

We report the case of a dog, 2 months old, who had hyperextension of the pelvic limbs and impossibility of joint flexion since birth. Based on clinical findings and complementary exams, a diagnosis of Genu recurvatum was established, from which, using moderate clinical signs, a conservative treatment was chosen, which consisted of immobilization, which were changed every four days. The patient achieved functional recovery of the limbs with 12 days of bandaging, with a favorable result, as he restored the functionality of the limbs. Adequate knowledge of the technique for making the bandage is important for the success of the treatment and to avoid complications related to immobilization.

Keywords: Immobilization. Hyperextension. Pelvic limb.

 

 

Introdução

 

Genu recurvatum é uma doença de ocorrência incomum em cães caracterizada por deformidades congênitas que afetam membros pélvicos com hiperextensão das articulações femorotibiopatelar e tíbio-társica. Além dessas alterações, pode ser observado luxação de patela e anteversão da cabeça do fêmur (LONGO, 1990; DENNY & BUTTEWORTH, 2006; MARTINS et al., 2018).

Pacientes acometidos pela síndrome do Genu recurvatum apresentam o membro pélvico rígido e afuncional pois não conseguem realizar o movimento de flexão. Essa anormalidade é geralmente vista em filhotes, podendo acometer inúmeras raças. Pode ocorrer de forma unilateral ou bilateral e eventualmente ocorre luxação coxofemoral (RUDY, 1974; DENNY & BUTTEWORTH, 2006; LONGO, 1990).

A patogenia dessa afecção envolve inicialmente a ocorrência de aderências que se formam entre o musculo quadríceps e a parte distal do fêmur, levando a rigidez articular. Com o passar do tempo, o membro afetado é mantido em extensão significativa a tal grau que o joelho pode dobrar-se caudalmente, formando o Genu recurvatum, com o tarso extendido. A parte cranial da coxa fica atrofiada, tensa e com textura cordiforme, e essencialmente ligada ao fêmur. Com a cronificação deste distúrbio, as alterações patológicas se tornam mais complexas, ocorrendo alterações degenerativas e fibrose peri-articular e intra-articular (BLOOMBERG, 2007).

O tratamento deve ser realizado o mais precocemente possível para que se tenha um resultado favorável. Dependendo da gravidade este pode ser conservativo ou cirúrgico (EGGER & FREEMAN, 1985). O tratamento conservativo é efetuado utilizando-se bandagens e fisioterapia (PENHA et al., 2002). Já o tratamento cirúrgico envolve a colocação de pinos e fixador externo em fêmur e tíbia induzindo a flexão do joelho (RUDY, 1974; JOHNSON, 1995). 

As bandagens se constituem como uma boa opção terapêutica, sendo bem toleradas pelos tutores, apresentam menor custo e maior segurança para o paciente, uma vez que ele não é submetido ao risco do procedimento cirúrgico (PENHA et al., 2002).

O objetivo do presente trabalho é relatar um caso de Genu recurvatum bilateral em um cão que foi tratado conservativamente por meio de bandagens e fisioterapia, assim como demonstrar a forma de confecção da bandagem, devido à escassez desta informação na literatura.

 

Relato de caso

 

Foi atendido um cão, 2 meses de idade, poodle, com histórico de hiperextensão dos membros pélvicos e impossibilidade de flexão articular desde o nascimento (figura 1). O paciente era fruto de um cruzamento consanguíneo e fazia parte de uma ninhada de seis filhotes, dos quais dois apresentavam alterações ortopédicas.

Clinicamente o paciente se encontrava em bom estado geral e com parâmetros fisiológicos normais. Foi realizado exame ortopédico e neurológico. No exame ortopédico dos membros pélvicos foi observado hiperextensão de tarso e joelho, instabilidade de patela, teste de bardens negativo, ângulo de flexão do joelho do lado direito 77° e 117° do lado esquerdo, perímetro da coxa direita 12,1 cm e da esquerda 10,8 cm. No exame neurológico o paciente apresentava paraparesia, aumento do tônus muscular e déficit de correção do teste de propriocepção nos membros pélvicos, além de reflexos patelares e flexores (membros pélvicos) diminuídos.

Figura 1 – Paciente no dia do atendimento inicial apresentando hiperextensão das articulações femorotíbiopatelares e tíbio-társicas.

 

Foram solicitados exames complementares que incluíram hemograma, radiografia dos membros pélvicos (incluindo articulações coxofemorais, femorotíbiopatelares e tíbio-társicas) e tórax. Hemograma e radiografia de tórax sem alterações. Radiografia do membro pélvico direito e esquerdo demonstrou anteversão das cabeças femorais, hiperextensão dos joelhos direito e esquerdo, com excessiva rotação externa e desvio caudal do joelho esquerdo e hiperextensão da articulação tíbio társica direita (figura 2).

 

Figura 2 – Imagem radiográfica do membro pélvico direito (D) e esquerdo (E), demonstrando anteversão das cabeças femorais, hiperextensão dos joelhos direito e esquerdo, com excessiva rotação externa e desvio caudal do joelho esquerdo e hiperextensão da articulação tíbio társica direita. 

 

Com base nos achados clínicos e dos exames complementares estabeleceu-se o diagnóstico de Genu recurvatum, a partir do qual, mediante os sinais clínicos moderados, optou-se pelo tratamento conservativo.

Para a confecção da bandagem (figura 3), a princípio foram cortados fragmentos de esparadrapo com largura e comprimento adequados para circundar os metatarsos e o abdome. Na porção do esparadrapo que vai entrar em contato com o paciente, foi necessário cortar outro fragmento de menor tamanho para aderir uma face colante na outra, evitando a adesão do esparadrapo aos pêlos.  Com os membros em posição anatômica o esparadrapo foi aplicado ao redor dos metatarsos e do abdome. Em seguida o joelho fora flexionado ao máximo permitido e um esparadrapo adicional foi colocado para unir o metatarso ao abdome, mantendo a máxima flexão do joelho. Ato contínuo, outro esparadrapo foi inserido ao redor da tíbia e do último esparadrapo aplicado para prevenir uma possível extensão do joelho. Ao término, foi removido uma porção em formato de meia lua do esparadrapo, na altura do pênis, para não comprometer a micção.

 

Figura 3 – Etapas de colocação da bandagem: 1- formas dos esparadrapos (estes devem ser colados uma face na outra para não aderir no pêlo do paciente) 2-colocação do esparadrapo nos metatarsos (seta) 3- colocação do esparadrapo no abdome (seta). 4- união dos metatarsos com o abdome, 5- união do esparadrapo da fase 2 e 3 com a tíbia (seta). 6 e 7- aspecto final da imobilização do paciente.

* remoção de uma porção em formato de meia lua do esparadrapo, na altura do pênis, para não comprometer a micção.

Foi recomendado que o paciente retornasse a cada quatro dias para troca de bandagens. Com quatro dias, na primeira troca de bandagem, o paciente já se mantinha em estação, mas com certa dificuldade. Na segunda troca ele já conseguia dar alguns passos. Na terceira troca, com 12 dias de tratamento, o paciente já deambulava adequadamente. Dessa forma, suspendeu-se a realização das bandagens e encaminhou-se para fisioterapia (Figura 4). Após a fisioterapia paciente obteve recuperação da deambulação normal.

 

Figura 4 – Adequado posicionamento dos membros pélvicos após 12 dias de tratamento.

 

Discussão

 

O paciente do presente caso apresentava hiperextensão das articulações tíbio-femuro-patelar e tíbio-társica, condizendo com a literatura relata sobre a apresentação do Genum recurvatum (MARTINS et al., 2018). No exame clínico do paciente foi possível realizar movimentos de flexão das articulações, dessa forma, classificou-se o caso como menos severo e instituiu-se tratamento conservativo com bandagens e fisioterapia.

Gutierrez et al. (2012) relatou um caso de um canino, SRD de 45 dias com hiperextensão das articulações femorotibiopatelar e tíbiotársica que foi tratado com a utilização de bandagens pelo período de 30 dias.  Figueiredo et al. (2009) também tratou um filhote, SRD, de 27 dias de vida com Genum recurvatum e obteve sucesso com a realização de bandagens pelo período de 12 dias. Estes casos corroboram com o presente trabalho, demonstrando que o tratamento conservativo é uma opção para cães com esta afecção.

As bandagens são feitas de esparadrapos e o objetivo é manter os membros em posição anatômica, induzindo a flexão da articulação do joelho.  Recomenda-se a troca a cada 3 ou 5 dias e avaliação da evolução do paciente por meio da marcha e atividade muscular, conforme realizado por Santos et al. (2017). De acordo com Lorenz (1977) é preciso ter cuidado para a bandagem não causar edema e isquemia. No paciente deste relato, a frequência da troca seguiu as recomendações de Santos et al. (2017) e não foi observado complicações relacionadas à imobilização.

O tratamento conservativo com fisioterapia e bandagens apresenta maior sucesso quando iniciado na terceira ou quarta semanas de vida, pois os ossos e articulações apresentam uma maior flexibilidade, o que facilita a correção da afecção (VERHOEVEN, 2006). Apesar do tratamento ter iniciado com 8 semanas de vida (dobro do tempo ideal para início do tratamento) o paciente do presente caso obteve recuperação funcional dos membros com 12 dias de bandagem, tendo um resultado considerado como favorável, isso ocorreu provavelmente em decorrência da menor severidade do caso, pois o tratamento não foi iniciado tão precocemente como relata a literatura.

No exame neurológico, o paciente apresentava paraparesia, aumento do tônus extensor e déficit de correção do teste de propriocepção nos membros pélvicos, reflexos patelares e flexores (membros pélvicos) diminuídos. Os presentes achados, apesar de mimetizar uma lesão medular, foram atribuídos à incapacidade do paciente em flexionar os membros pélvicos, sendo esta suspeita corroborada pela constatação da deambulação adequada do paciente, 12 dias após o tratamento com a bandagem.

 

Conclusão

 

O tratamento conservativo do Genu recurvatum com bandagens e fisioterapia no paciente do presente caso foi satisfatório pois restabeleceu a funcionalidade dos membros.  O conhecimento adequado da técnica de confecção da bandagem é importante para o sucesso do tratamento e para evitar complicações relacionadas à imobilização.

 

Referências

 

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Recebido em 22 dezembro de 2020

Aceito em 19 de fevereiro de 2021