Revista Agrária Acadêmica
Volume 4 – Número 2 – Mar/Abr (2021)
doi: 10.32406/v4n2/2021/101-107/agrariacad
Relações entre hábitos alimentares e aspectos anatômicos dos estômagos de animais domésticos – breve revisão de literatura. Relationship between food habits and anatomical aspects of stomaches of domestic animals – brief literature review.
Maria Priscila da Silva Carvalho1, Priscilla Virgínio de Albuquerque2, Emanuela Polimeni de Mesquita³, Ana Greice Borba Leite
1*
1- Departamento de Medicina Veterinária, Centro Universitário Facol – UNIFACOL, Vitória de Santo Antão, PE, Brasil. E-mail: maria12pri@icloud.com, ag_mv530@hotmail.com
2- Departamento de Morfologia e Fisiologia Animal, Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE, Recife, PE, Brasil. E-mail: priscilla2009w@hotmail.com
3- Departamento de Medicina Veterinária, Universidade Federal do Agreste de Pernambuco – UFAPE. Garanhuns, PE, Brasil. E-mail: emanuela.polimeni@ufape.edu.br
Resumo
Esta revisão de literatura aborda as variações morfológicas do estômago de animais domésticos associando-as com a dieta dos mesmos. O estômago é um importante órgão que se dispõe entre o esôfago e o intestino delgado. Trata-se de uma porção dilatada do sistema digestório, onde ocorre a digestão parcial, bem como processos absortivos e secreção de hormônios e enzimas. O órgão apresenta grande variação anatômica entre os mamíferos, estando essa condição associada aos hábitos alimentares assumidos pelas diversas espécies. Foram utilizados como base para estruturação textual deste trabalho, artigos científicos e livros de anatomia, histologia, clínica médica veterinária, manejo e nutrição animal. O estômago pode ser classificado em unicavitário, quando é constituído por uma única dilatação saculiforme, sendo descrito em carnívoros como o cão e o gato, herbívoros como os equinos e onívoros como os suínos. Sendo estes dois últimos caracterizados por um revestimento estomacal glandular e aglandular, enquanto que nos dois primeiros o tecido de revestimento é totalmente glandular. O estômago é dito pluricavitário, quanto é formado por compartimentos, como em ruminantes, nos quais, as câmaras constituintes são predominantemente aglandulares, sendo uma glandular. O conhecimento do tema em questão tem grande relevância, sobretudo para médicos veterinários, a fim de que estes profissionais consigam identificar de forma eficaz, possíveis alterações que possam acometer o estômago, favorecendo os cuidados a animais enfermos.
Palavras-chave: Morfologia. Sistema Digestório. Dieta. Mamíferos.
Abstract
This literature review addresses the morphological variations in the stomach of domestic animals by associating them with their diet. The stomach is an important organ located between the esophagus and the small intestine. It is an enlarged portion of the digestive system, where partial digestion occurs, as well as absorptive processes and secretion of hormones and enzymes. The organ has great diversity among mammals, this condition being associated with the eating habits assumed by the representatives of the class. Scientific articles and books on anatomy, histology, veterinary medical clinic, animal management and nutrition were used as a basis for textual structuring of this work. The stomach can be classified as unicavitary, when it consists of a single saculiform dilation, being described in carnivores as the dog and the cat, herbivores as the horses and omnivores as the pigs. The latter two being characterized by a glandular and aglandular stomach lining, while in the first two the lining tissue is entirely glandular. The stomach is said to be pluricavitary, when it is formed by compartments, as in ruminants, in which the constituent chambers are predominantly aglandular, being a glandular one. Knowledge of the subject in question is of great relevance, especially for veterinarians, so that these professionals can effectively identify possible changes that may affect the stomach, favoring the care of sick animals.
Keywords: Morphology. Digestive system. Diet. Mammals.
Introdução
O estômago é a região dilatada do trato digestório, que se interpõe entre o esôfago e o intestino delgado, na qual ocorrem importantes processos de digestão, que se caracterizam pela transformação dos alimentos, de grandes partículas em moléculas menores, que são mais facilmente absorvidas pelas células. Outras funções essenciais do órgão são: a secreção de hormônios como a gastrina, responsável por estimular a produção gástrica de ácidos e enzimas, como a lisozima que destrói a parede de bactérias. São ainda atribuições do órgão, o armazenamento temporário de alimentos e a absorção de água e medicamentos (ROCHA, 2018; DYCE et al., 2019).
O estômago dos mamíferos apresenta significativas variações morfológicas, recebendo diferentes classificações relacionadas, principalmente, à forma e a característica da mucosa de revestimento (KÖNIG; LIEBICH, 2004). Quanto à forma, o órgão pode ser unicavitário, quando apresenta apenas um compartimento ou pluricavitário, com várias repartições.
Quanto ao revestimento mucoso, o estômago unicavitário pode ser simples, ou seja, revestido em sua totalidade por tecido glandular ou composto quanto é observado mucosa glandular e aglandular. Já o pluricavitário, conta com revestimento mucoso, exclusivamente composto, com regiões glandulares e aglandulares (KÖNIG; LIEBICH, 2004; DYCE et al., 2019). Na mucosa glandular ocorre a secreção de produtos como enzimas, hormônios e ácidos que ajudam na digestão química, enquanto que a aglandular, geralmente associa-se a processos fermentativos e digestão microbiana (FRANDSON et al., 2011).
Os mamíferos apresentam exigências nutricionais e hábitos alimentares que divergem entre as várias espécies. Essa condição é combinada a particularidades anatômicas do trato digestório. Portanto, sobretudo ao se tratar de animais domesticados, a falta do entendimento desta relação, pode levar a oferta de alimentação errada e consequentemente a problemas nutricionais (OGOSHI et al., 2015).
Para o Médico Veterinário, conhecer as particularidades anatômicas do estômago é de grande importância, visto que, o órgão pode ser acometido por várias doenças e traumatismos nas diferentes espécies (LEOPOLDINO et al., 2008; ARANZALES; ALVES, 2013). Dessa forma, se propôs com este trabalho, desenvolver uma revisão de literatura apontando as principais variações morfológicas do estômago de animais domésticos associando-as com os hábitos alimentares dos mesmos, a fim de contribuir com a clínica médica animal.
Metodologia
Para a produção desse trabalho foi realizado um levantamento na literatura, a partir das bases de dados Scielo, Google Acadêmico e livros de anatomia, histologia, clínica médica veterinária, manejo e nutrição animal. De modo geral, foram empregados como descritores para as pesquisas, os termos: estômago, animais domésticos, ruminantes, não-ruminantes, doenças que acometem o estômago dos animais, hábitos alimentares dos mamíferos, dieta de cães e gatos e mecanismos da ruminação animal. No total foram utilizados seis artigos científicos publicados nos últimos 12 anos, oito livros e um atlas, cujas edições datam dos últimos 16 anos.
Revisão de literatura
Os animais domésticos quanto à dieta são distribuídos, de modo geral, em herbívoros, carnívoros e onívoros. Os herbívoros obtêm energia a partir de vegetais; os carnívoros, por sua vez, consomem alimentos derivados de outros animais, principalmente a carne e os onívoros ingerem fontes vegetais e animais, sendo caracterizados por hábitos bem variados (ALMEIDA, 2005).
De acordo com Dyce et al. (2019) muito dessa diversidade é claramente adaptativa, simultânea à forte intervenção humana na domesticação e na mudança contínua da alimentação dos animais. Essas condições não influenciaram apenas na nutrição, mas também na anatomia de estruturas do sistema digestório, destacando-se o estômago.
Os herbívoros consomem alimentos que não são facilmente digeridos, cujo valor nutricional é mais baixo e por isso precisam ser ofertados em grande quantidade, sobretudo para equinos e ruminantes. Estes animais apresentam em seu trato digestório relações simbióticas com micro-organismos que favorecem consideravelmente os processos de fermentação e degradação da celulose (DYCE et al., 2019).
Os equinos são mamíferos não-ruminantes que apresentam um estômago unicavitário composto e relativamente pequeno em proporção ao tamanho corporal e ao consumo alimentar (AL JASSIM; ANDREWS, 2009; DYCE et al., 2019). Frandson et al. (2011), subdividiram macroscopicamente o estômago desses animais em fundo, corpo e região pilórica (Fig. 1A). Eles sofreram fortes influências humanas devido a sua domesticação e hábitos alimentares baseados em dietas concentradas, resultando numa mudança radical do estômago. Sendo em sua maior parte, revestido por mucosa glandular, mas podendo-se evidenciar uma ampla área do fundo e do corpo do órgão, apresentando mucosa aglandular (Fig. 1B) (BRANDI; FURTADO, 2009; DYCE et al., 2019).
Os equinos conseguem suprir muito de suas exigências nutricionais apenas com o consumo de gramíneas. Estes herbívoros têm uma região cecocólica bem desenvolvida, sendo ela responsável pela maior parte da fermentação. O estômago, por sua vez, também contribui com os processos fermentativos, em sua porção aglandular, mas, a produção de ácidos graxos voláteis é consideravelmente menor quando comparado ao intestino grosso (KÖNIG; LIEBICH, 2004; BRANDI; FURTADO, 2009; DYCE et al., 2019).
Os ruminantes, por sua vez, possuem o estômago composto, dividido em quatro compartimentos, sendo, portanto, pluricavitário (Fig. 1C e 1D). As três primeiras repartições (rúmen, retículo e omaso) são consideradas as câmaras gástricas anteriores, compreendendo a porção aglandular do órgão. Essas câmaras abrigam importantes microrganismos que possuem atividade fermentativa, o que garante que uma parte da digestão se realize antes de atingir a última câmara, o abomaso, onde ocorrem os mecanismos de digestão química (BERCHIELLI et al., 2006; FRANDSON et al., 2011; MACHADO et al., 2015; DYCE et al., 2019). O abomaso corresponde ao estômago verdadeiro, é nele onde se encontra a mucosa glandular (FRANDSON et al., 2011).
A capacidade ruminativa característica do grupo lhes permite um aproveitamento mais eficaz dos nutrientes, fazendo com que esses animais não tenham a necessidade de consumir fontes externas de aminoácidos essenciais e vitaminas do complexo B (VALADARES FILHO; PINA, 2006).
Figura 1 – Estômagos de animais domésticos herbívoros. Estômago de equino fechado (A), com o esôfago (seta), evidenciando o fundo (1), corpo (2) e região pilórica (3), e o mesmo estômago aberto (B) mostrando a região aglandular (*) e a margem pregueada (seta fina). C e D representam o estômago de pequeno ruminante, com múltiplas cavidades, estando o órgão fechado em C e aberto em D. Sendo o rúmen (1), retículo (2), omaso (3) e abomaso (4). A seta preta indica o esôfago e a seta branca o baço.
Já os suínos, são considerados animais onívoros, pois se alimentam de matérias orgânicas diversas. Eles apresentam um estômago unicavitário composto, semelhante ao dos equinos. Todavia, para os suínos, a região fúndica é relativamente menor e apresenta um divertículo gástrico. O órgão é predominantemente glandular e a porção aglandular limita-se a uma estreita faixa à altura da cárdia (FRANDSON et al., 2011; DYCE et al., 2019) (Fig. 2A e 2B).
Os cães e gatos, contam com alimentação facilmente digerível. Esses animais são considerados carnívoros, sendo o cão mais generalista, enquanto que o gato é considerado um carnívoro estrito. Eles possuem um estômago unicavitário com uma mucosa simples (FASCETTI; DELANEY, 2012; DYCE et al., 2019) (Fig. 2C e 2D).
De acordo com König e Liebich (2004), o estômago desses mamíferos possui o formato de “C’, quando eles estão cheios ou parcialmente vazios. Além disso, contém o pH baixo que se torna apto a digerir proteínas, muito encontradas na carne.
Em se tratando da histologia do estômago, têm-se algumas diferenças também entre monocavirários e pluricavitários. Os monocavitários possuem estômago revestido por epitélio cilíndrico simples mucoso que apresenta junções de oclusão entre as células superficiais e da fosseta, formando uma barreira protetora. O muco produzido confere uma camada que recobre toda a superfície, formando um filme que impede a danificação da mucosa pelo ácido gástrico. Além disso, ocorre invaginação do epitélio em direção à lâmina própria, formando as fossetas gástricas, são nelas onde desembocam a secreção das glândulas estomacais (CHAGAS et al., 2007).
Figura 2 – Estômago de animais domésticos. Estômago de suíno fechado (A), com o esôfago (seta), apresentando o fundo (1), corpo (2) e região pilórica (3), e o mesmo estômago aberto (B) mostrando a região aglandular (*), o recesso gástrico (seta branca) e o toro pilórico (seta preta). Estômago de cão fechado (C) apresentando as regiões de fundo (1), corpo (2) e região pilórica (3), além do esôfago indicado pela seta, e aberto (D) apresentando a mucosa glandular.
As glândulas gástricas podem ser classificadas em três regiões: glândulas cárdicas, fúndicas e pilóricas, de acordo com o local onde estão presentes. Quanto à natureza da secreção que produzem, podem ser mucosas ou secretoras de suco gástrico. Normalmente as glândulas cárdicas e pilóricas produzem principalmente muco, que servirá como proteção para a mucosa, evitando assim injúrias pelo ácido gástrico (KONIG; LIEBICH, 2011).
Aprofundando nas camadas histológicas, tem-se a camada muscular. Trata-se de uma camada de músculo liso (CHAGAS et al., 2007), que tem como função misturar o alimento e suco gástrico para posterior direcionamento ao duodeno. Essa camada está disposta em camada circular (interna) que forma os esfíncteres cárdico e pilórico; e uma camada longitudinal externa, composta por fibras longitudinais, fibras oblíquas externas e fibras oblíquas internas (KONIG; LIEBICH, 2011).
Já a camada serosa é delgada, composta por tecido conjuntivo frouxo, vasos sanguíneos e linfáticos, tecido adiposo e mesotélio. Já a camada adventícia, possui tecido conjuntivo frouxo, vasos sanguíneos e linfáticos, tecido adiposo, mas não possui mesotélio. Essa última camada limita o órgão em relação a cavidade e aos órgãos adjacentes (CHAGAS et al., 2007).
Nos animais pluricavitários, o rúmen, retículo e omaso apresentam revestimento por epitélio estratificado pavimentoso queratinizado e aglandular. E o abomaso, semelhante ao estômago glandular dos monocavitários, possui a mesma constituição histológica desse tipo de estômago (CHAGAS et al., 2007).
Considerações finais
O estômago dos animais domésticos apresenta variações morfológicas de acordo com os tipos alimentares preferidos pelas espécies. Ao longo do tempo, necessidades adaptativas foram e são responsáveis por ocasionar mudanças simultâneas na dieta e na anatomia estomacal. Conhecer essa relação é fundamental para uma boa prática veterinária, no tratamento de animais feridos e doentes, assim como na adoção de um correto manejo nutricional.
Referências bibliográficas
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Recebido em 23 de março de 2021
Aceito em 26 de abril de 2021