Olfato canino na missão de busca por cadáver humano – relato de caso

Revista Agrária Acadêmica

Agrarian Academic Journal

doi: 10.32406/v5n1/2022/16-28/agrariacad

 

Olfato canino na missão de busca por cadáver humano – relato de caso. Canine smell on human corpse search mission – case report.

 

Éderson Luis Lima Gomes1, Sandra Márcia Tietz Marques2

 

1- Bombeiro. CEBS – Corpo de Bombeiros Militar do Rio Grande do Sul – Av. Mauá 1050 – Porto Alegre – RS. E-mail: edertakwondo@yahoo.com.br.
2- Médica Veterinária – Faculdade de Veterinária – Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Av. Bento Gonçalves, 9090, Bairro Agronomia, CEP: 91540-000, Porto Alegre – RS. Autor para correspondência: Fone: (51) 3308-6136. E-mail: santietz@gmail.com.

 

Resumo

Os cães têm cerca de 200 milhões de receptores olfativos em seu nariz, tornando seu olfato cerca de 40 vezes maior do que o do ser humano. Isso permite que eles farejem tudo, bombas, drogas, corpos humanos e até doenças. O objetivo desse trabalho é descrever aspectos relevantes de cães que trabalham com busca de cadáveres e restos humanos. Esta habilidade é a combinação de alta resistência, concentração, obediência e destreza de seus narizes. Relata-se o caso de busca por indivíduo assassinado, o qual foi solicitado o trabalho de um binômio para auxiliar na descoberta deste corpo. A ocorrência levou ao encontro dos restos mortais da pessoa desaparecida e o encerramento do caso.

Palavras-chave: Cão farejador. Detecção de odores cadavéricos. Restos mortais.

 

Abstract

Dogs have about 200 millions olfactory receptors in their nose, making their sense of smell about 40 times that of humans. This allows them to sniff out everything, bombs, drugs, human bodies and even diseases. The objective of this work is to describe relevant aspects of dogs that work with the search for cadavers and human remains. This skill is the combination of high endurance, concentration, obedience and the dexterity of their noses. The case of the search for a murdered individual is reported, in which the work of a binominal was requested to assist in the discovery of this body. The occurence led to discovery of the remains of the missing person and the closure of the case.

Keywords: Sniffer dog. Detection of cadaveric odors. Remains.

 

Introdução

 

O cão doméstico (Canis lupus familiaris) tem sido usado desde os tempos antigos pela espécie humana como uma ferramenta de trabalho extremamente versátil e vantajosa, dotado de um incrível sentido de olfato, associados a uma excelente capacidade de aprendizagem e obediência, se constituindo o parceiro ideal do Homem para realizar trabalhos que vão desde guiar cegos ou guardar habitações, até a detecção de odores ou à busca e salvamento.

Enquanto um humano experimenta e interpreta o mundo primordialmente através das informações visuais que colhe, o cão experimenta e interpreta o mundo através dos odores. Além disso, apesar de o cérebro humano ser cerca de 10 vezes maior que o dos cães, a área do cérebro destinada à interpretação dos odores é cerca de quatro vezes maior no cão do que a mesma área no cérebro dos humanos.

Não é apenas essa maior quantidade de células olfativas e maior área do cérebro que tornam os cães farejadores natos, mas a técnica adotada e a própria anatomia. Estima-se que o olfato do cão é quarenta vezes mais sensível do que o do homem. O homem aproveita esta sensibilidade olfativa do cão para treiná-lo a procurar pessoas, objetos, bombas, drogas, vazamento de gases, etc. Este olfato pode ser prejudicado por doenças e, até mesmo, pelo tipo de alimentação (CRAVEN et al., 2010; LOBÃO, 1992).

Esta revisão da expertise do olfato canino no trabalho em órgãos governamentais acrescida de um relato de caso descreve a busca por indivíduo assassinado, o qual foi solicitada a presença de um bombeiro e seu cão especialista em odor de cadáveres e restos humanos para determinar a descoberta deste corpo.

 

Desenvolvimento

 

O cão e seu nariz farejador

 

O odor resulta do “desprendimento de substâncias químicas que ficam em suspensão no ar à nossa volta”, e advém de uma mistura de várias moléculas odorivetoras (de baixo peso molecular) que são captadas pelos receptores sensoriais olfativos que, ao serem interpretadas pelo cérebro, nos fazem experimentar um cheiro. Deste modo, uma substância é denominada odorante se for capaz de provocar uma percepção olfativa, sendo inodora se não o fizer (AMORIM, 2014).

Devido à sua volatilidade, os odores alteram as suas características ao longo do tempo, sendo também facilmente deslocados por movimentações do ar e dissolvidos por outros odores presentes no mesmo ambiente. Fatores como umidade e temperatura também podem alterar a qualidade deste, já que as moléculas odorivetoras apresentam uma baixa solubilidade em água e não resistem a temperaturas elevadas. Estas particularidades são o que permite a formação do chamado cone de dispersão odorífica a partir de uma fonte de odor, e a sua concentração torna-se progressivamente mais alta à medida que o cão se aproxima do alvo que procura, estando menos concentrado à medida que se afasta, criando um cone invisível de moléculas odorivetoras, cada vez mais escassas à medida que estas se afastam da origem (REBMANN et al., 2000; SCHOON, 2005; SOBEL et al., 1998).

Segundo a teoria dos cones odoríficos, a direção do fluxo de ar estabelecerá a direção do cone, sendo que, na ausência de correntes de ar, o odor permanece estagnado junto à fonte. Um cone pode ser distorcido de diversas formas, o que, por vezes, traduz um desafio para os cães de detecção. Felizmente, os canídeos conseguem facilmente apurar a concentração das moléculas no ar farejado, indo na direção onde o cheiro se torna mais forte (AMORIM, 2014; REBMANN et al., 2000; SCHOON, 2005)

Nos cães, as narinas são voltadas para frente e bem projetadas em relação ao crânio, fazendo com que captem habilmente as moléculas de odor que estejam em suspensão no ar. Os cães também respiram o ar com as narinas em contra fluxo, ou seja, enquanto uma das narinas aspira o ar, a outra exala, e dessa forma mantém um fluxo constante do ar sempre entrando na cavidade  nasal (como um aspirador de pó), não acarretando em interrupção na captação de odores e permitindo diferenciar a origem da direção de uma fonte de odor (Figuras 1 e 2).

 

Figura 1 – Entrada e saída do ar em cães. Fonte: HAMKER, 2021

 

Figura 2 – Dinâmica do fluxo nasal do cão. Fonte: HAMKER, 2021

 

Algumas raças de cão possuem mais de 100 milhões de receptores sensoriais olfativos, embora alguns autores considerem uma média de 220 milhões destas células, contrastando com cinco milhões presentes no sistema olfativo humano. Isto permite que a sensibilidade olfativa canina seja cerca de 1000 a 1.000.000 de vezes superiores à humana (DENNIS et al., 2003). As diferenças, porém, não se limitam apenas ao nível das células receptoras, podendo ser também observadas a nível cerebral. Amorim (2014) afirma que existem 40 vezes mais células cerebrais ligadas à identificação de odores no cérebro canino do que nos seres humanos.

O olfato pode ser estimulado por fontes de odores distantes e as moléculas de odor podem ser reconhecidas em baixas concentrações (SJAASTAD, 2010). O sistema olfativo dos mamíferos consiste em narinas pares (orifícios externos), narinas internas (coanas), câmaras ou cavidades nasais, células receptoras, nervos olfativos e os bulbos olfativos do cérebro (REECE, 2006). As paredes laterais da cavidade nasal consistem em ossos turbinados nomeados pelos ossos da face dos quais fazem parte nasoturbinados, maxiloturbinados e etmoturbinados (CRAVEN et al., 2010). 

As células receptoras olfativas do nariz do cão encontram-se principalmente ao longo do epitélio olfativo especializado encontrado nos ossos etmoturbinados da cavidade nasal (CORREA, 2016). Os ossos nasoturbinados são simples estruturas alongadas, enquanto os ossos maxiloturbinados são formados por várias dobras cobertas por uma mucosa ricamente suprida de vasos sanguíneos. Esta parte do nariz funciona como um permutador de calor e umidade com o ar inalado (REECE, 2006).

Os cães possuem uma espécie de segundo nariz, que é um órgão localizado acima do palato mole da cavidade oral, denominado órgão Vomeronasal (Figura 3).

 

Figura 3 – Esquema do órgão vomeronasal em vista dorsal. Fonte: GENELHOUD (p. 15, 2017)

 

O órgão vomeronasal capta e identifica moléculas de odor mais pesadas e insolúveis em água, como os feromônios ou comunicadores químicos dos animais. A captação dessas moléculas é feita pela língua e não pelo nariz, onde o cão realiza repetidas e curtas lambidas na região marcada pela substância. Através das lambidas, as moléculas de odor são transportadas até o órgão vomeronasal e interpretadas como odor (SOBEL et al., 1998).  Algumas pesquisas mostram que a sensibilidade do faro dos cães é na escala de PPT (parte por trilhão), o que significa que se existirem algumas poucas moléculas de uma substância para qual o cão foi treinado detectar, e elas estiverem dissolvidas em meio a um trilhão de moléculas diferentes, ele será capaz de encontrá-la (REBMANN et al., 2000; VASS et al., 2008).

As células olfativas se renovam a cada 30 dias e são regeneráveis. Em caso de lesões, elas se recuperam e o sentido é recobrado. Células nervosas, fotorreceptoras ou responsáveis por identificar sabor ou som não se regeneram, por isso, se houver lesões, a função ficará permanentemente comprometida.

Os cães são detectores de odores confiáveis e eficientes, e numerosos estudos comprovaram a proficiência dos cães em localizar uma ampla gama de aromas. Cães treinados reduzem o tempo para a busca de um objeto alvo, além de serem mais sensíveis, confiáveis e práticos do que outros dispositivos de detecção. Além disso, os cães também são fáceis e baratos para treinar e colocar em ação (BROWEN et al., 2006).

 

O cão como parceiro de trabalho

 

Evidências demonstraram o uso de cães farejadores, utilizados como cães de caça, há mais de 12.000 anos (FURTON; MYERS, 2001). A capacidade dos cães para detectar odores que não são detectáveis por seres humanos ou para os quais não estão disponíveis equipamentos de detecção, bem como a mobilidade e agilidade desses animais, levou empresas, indivíduos e várias agências governamentais a usar, cada vez mais, cães para detectar materiais perigosos ou de interesse para os mais diversos fins (GREENBERG; HARAWAY, 1998).

O olfato canino pode ser usado para investigar marcações territoriais e na detecção de amigos e inimigos. Quando bem trabalhados o olfato canino pode ser utilizado para busca de pessoas desaparecidas ou corpos humanos em desastres, rastreamento e identificação de suspeitos de crimes, detecção de drogas, explosivos, minas terrestres, contrabando, alimentos e, mais recentemente, a detecção de marcadores de odores relacionados a doenças humanas e animais (GAZIT; TERKEL, 2003).

A identificação de odores corporais foi descrita pela primeira vez em 1887, quando se relatou a capacidade dos cães em identificar pessoas através de seus odores intrínsecos, mesmo na presença de outros odores externos, em diferentes condições ambientais e distantes de seus alvos (ROMANES, 1887; GENELHOUD, 2017; VASS et al., 2008).

Os cães farejadores forenses têm como objetivo usar seu olfato para obter provas que auxiliem uma investigação. No caso dos cães de detecção eles têm como principal função usar a sua percepção olfativa aguçada para detectar um odor específico, assim como encontrar a fonte desse mesmo odor. Existem ainda diversas especialidades, divididas segundo o tipo de material que se pretende detectar, sendo que um cão será geralmente especializado apenas numa dessas. Atualmente, as mais desenvolvidas e com maior número de cães operacionais em redor do mundo são a da detecção de explosivos e detecção de narcóticos, como forma de combate ao terrorismo e ao tráfico de drogas, respectivamente. Quanto aos cães de busca e salvamento é mais focada em indivíduos vivos e cadáver (REBMANN et al., 2000). 

Na área forense, a confiabilidade das informações e reconhecimento do agressor, fundamentadas apenas na memória da vítima vem sendo postas à prova, o que leva a busca de novas ferramentas que diminuam o reconhecimento errôneo de suspeitos de crime. Vários estudos e experimentos têm sido realizados no sentido de fortalecer as evidências olfativas detectadas pelos cães quando rastreiam e identificam odores deixados por suspeitos em locais de crime. A natureza do odor humano é complexa e dependente de fatores genéticos, além de outros endógenos e exógenos. Seres humanos têm uma individualidade odorífera única, ou odor tipo passível de ser rastreado pelos cães, entretanto a identificação individual baseada em pistas olfativas ainda não é bem aceita em Tribunais devido à falta de estudos na área (GENELHOUD, 2017, UELAND et al., 2021).

A Rússia foi o primeiro país a adotar a prática de recorrer ao olfato canino para resolução de investigações criminais, em 1906, introduzindo-a depois às regiões Balcãs e ao resto da Europa. O primeiro cão polícial treinado exclusivamente para a procura de vestígios biológicos começou o seu trabalho em 1974 nos Estados Unidos, sendo que em 1977 foi criado pela Connecticut State Police o primeiro curso de treinamento de cães de detecção de cadáveres. Desde a década de 70 que são usadas estas brigadas para localizar corpos dentro de água (REBMANN et al., 2000).

Atualmente, todos os países possuem unidades caninas policiais ou militares operacionais, para além de mais de uma centena de grupos voluntários de cães de busca e detecção em redor do mundo. Em Portugal, no entanto, os cães de detecção são ainda um projeto embrionário (PRADA et al., 2015) a restos humanos e decomposição cadavérica, em locais tão diversos como por baixo do solo ou na água; são chamados de “cães de morte” ou “cães forenses” (ENSMINGER, 2011). A dificuldade do seu trabalho prende-se com o fato de a decomposição produzir e libertar um conjunto de vários odores genéricos que são diferentes dos que são encontrados em indivíduos vivos, e que vão variando ao longo dos diferentes estágios da decomposição (ENSMINGER, 2011; REBMANN et al., 2000).

De uma forma simplista, pode afirmar-se que a produção de moléculas odorantes é mínima imediatamente depois da morte, aumentando gradualmente até atingir o clímax durante os períodos de autólise e putrefação, diminuindo depois até cessar, praticamente, no período de decomposição esquelética. É por isso importante que estes cães sejam treinados de forma a conseguirem detectar odores de um espetro que vai desde cadáveres frescos, até restos esqueléticos, ou a apenas fluidos corporais vestigiais (FORBES et al., 2014; VASS et al., 2008).  

Os níveis de dopamina são mais elevados em raças conhecidas pela sua hiperatividade, curiosidade e motivação, como os Huskies, os Border Collies e os Pastores Belga Malinois, em oposição a raças mais calmas, os molossóides. Este achado permitiu afirmar que as diferenças inter-raciais caninas a nível cognitivo, motivacional e de performance olfativa se deve a uma diferença nos níveis deste neurotransmissor. De fato, a dopamina age no tubérculo olfativo do córtex olfativo, produzindo o “efeito de recompensa” que motiva o animal a completar tarefas, além do comportamento olfativo exploratório de farejar (GADBOIS; REEVE, 2014).

 

Cão especialista em localização de cadáver e restos mortais

 

O treinamento e a operacionalização de cães de cadáveres têm muitas características compartilhadas com cães com vocação para outros tipos de busca por faro, porém muitos aspectos são únicos. O odor pelo qual estes cães se tornam especialistas difere pelas diferenças entre (1) perfume de ar versus cão de rastreamento e (2) detecção de perfume de decomposição humana versus outros aromas (REBMANN et al., 2000).

O cão deve ter resistência significativa pelas condições que ele poderá enfrentar na missão de busca, como fatores ambientais, o terreno e a duração da pesquisa pelo corpo ou restos mortais. A resistência é tanto um resultado do cuidado dado a um cão quanto seus genes. Um cão que não é exercitado, ou está com sobrepeso e mal treinado, se sai mal. Um cão com excesso de peso também pode ser vítima de problemas ósseos degenerativos, afetando severamente sua resistência à busca. Testes para avaliar o estado mental do cão para esta tarefa também estão disponíveis.

O olfato do cão é a sua qualidade mais diferenciada. Problemas no olfato podem ser difíceis de testar. A observação de um treinador sobre o comportamento de um cão pode ser bastante confiável para determinar se um cão não parece estar funcionando bem para detectar odores específicos (VASS et al., 2008). Nesta especialidade, a composição do cheiro de cadáver é diferente do odor emitido por uma pessoa viva. No momento da morte biológica, o cheiro individual emitido pelo indivíduo passa por transformação. Esta mudança de cheiro não é imediatamente percebida por um ser humano, porém o nariz canino já detecta esta composição de odores em mutação e o cão muda seu comportamento, que deve ser reconhecido pelo seu treinador (GROVERS MILL, 2018).

As reações químicas associadas à decomposição são essencialmente as mesmas em todos os corpos. Há uma variedade de aromas produzidos durante os diferentes estágios do processo de decomposição cadavérica. Portanto o cão especialista em localização de cadáver e restos mortais humanos deve ser treinado para reconhecer e reagir a todo esse espectro de cheiros, que muda à medida que o corpo avança pelos estágios de decomposição e a química muda e prossegue por cinco estágios até que o corpo esteja completamente esqueletizado (REBMANN et al., 2000; UELAND et al., 2021).

O processo de decomposição produz uma variedade de gases, líquidos e ácidos, subprodutos responsáveis pelo odor que o cão treinado diferencia e reconhece. Existem duas situações especiais com resultados diferentes de cheiros: (1) se o corpo se decompuser em ambiente úmido, haverá a produção de adipocere (gordura rançosa); (2) se o corpo for deixado em um ambiente quente e seco, ele mumificará e o odor será bolorento (FIEDLER; GRAW, 2003; VASS et al., 2008).

Os odores normais dos cadáveres se devem aos microrganismos que normalmente acompanham o ser humano em vida, no intestino e pulmões, principalmente. Se a morte ocorreu por alguma doença, outros agentes diferentes estarão presentes. São variações que determinarão o espectro de odores e o tempo de decomposição. A temperatura ambiente afeta a decomposição e a liberação de odores, o fluxo de ar, a umidade, e uma variedade de outros itens ligados ao corpo e ao local de deposição passa por um período odorífero e culmina, finalmente por ser imperceptível para o nariz humano, mas não para o nariz de um cão bem treinado (GADBOIS; REEVE, 2014).  

Os compostos orgânicos voláteis (COV) produzidos por cadáveres são desdobrados quimicamente em: vários níveis de compostos de enxofre, cetonas, compostos halogenados, hidrocarbonetos, ésteres, aromáticos, aldeídos, álcoois e compostos contendo nitrogênio. A presença de compostos vai variar na dependência do tempo de morte e condições específicas da localização do corpo ou restos mortais (UELAND et al., 2021; VASS et al., 2008).

A precisão na detecção de cadáveres e/ou restos mortais mostra que cães treinados podem sentir o cheiro de restos até 4,5 metros de profundidade, detectar restos mortais de até 30 metros debaixo d’água e, às vezes, precisam apenas de uma fração de um osso ou uma gota de sangue para determinar a localização de um cadáver.  Podem percorrer 1,3 quilômetros quadrados por dia, em média, trabalhando com uma ferocidade que não descansa até que o cadáver seja detectado (UELAND et al., 2021; VASS et al., 2008).

Surpreendentemente, esses cães são capazes de detectar a diferença entre restos humanos e animais em sua área rastreada. Usando seu forte senso de cheiro, eles podem trabalhar pela floresta e ignorar os esquilos e pássaros em decomposição, enquanto se concentram especificamente no cheiro de um humano falecido; podem detectar cheiros residuais, isto é,  se um corpo ou parte do corpo foi inicialmente colocado em algum lugar e movido pelo assassino em outro lugar, o cão ainda pode identificar o cheiro da morte na área, fornecendo aos especialistas informações mais críticas para o encerramento do caso (GROVERS MILL, 2018).

 

O treinamento de cão de busca de restos mortais

 

O cão para ser especialista em cadáver e restos mortais passa por treinamento diário de no mínimo 12 meses. Este treinamento o habilitará a indicar um corpo ou restos desse em qualquer estado de decomposição, inclusive restos esqueletizados. O cão terá contato com gases/odores de 450 a 479 COV (Composto Orgânico Volátil) liberados durante a decomposição humana.

O cão selecionado para esta especialidade precisa ter determinadas características ou habilidades, como gostar de pessoas, temperamento hiperativo e brincalhão, para que assim, durante o treinamento e ocorrência de busca de corpo ou restos mortais (RM), o cão tenha o “efeito de recompensa”, em recebê-la quando localiza o objeto ou RM. Durante esta formação o cão deve aprender a trabalhar livre, na técnica K-SAR, ter bom controle (obediência), ter boa socialização com pessoas e animais e ambientação em ambientes diversos.

 

Relato de caso

 

O canil da Companhia Especial de Busca e Salvamento (CEBS) do Corpo de Bombeiros do Estado do Rio Grande d Sul (CBMRS) foi solicitado no dia 26/02/2021 pela Delegacia de Polícia da cidade de Sapiranga – RS, pelo Delegado de Polícia local para a busca do corpo de uma pessoa desaparecida a dois meses na cidade de Araricá – RS. Com o auxílio do Binômio (homem/cão), o Soldado Gomes e o cão General (Figura 4) percorreram a área suspeita indicada pela equipe da Polícia Civil.  Nesta busca, o bombeiro marca a trilha de faro com o Aplicativo Wikiloc® (Figura 5), percurso que ele faz seguindo seu cão na coleira e guia.

Após duas horas de buscas na mata, o cão sinalizou o local onde estariam os restos humanos. Iniciou-se cavando o local marcado, e visualizaram a vítima pelos pés, enterrada na vertical em uma cova funda, havendo, portanto, a necessidade do uso de uma máquina escavadeira para a retirada do corpo (Figura 6a). O local ficou isolado à espera do Instituto Geral de Perícias (IGP) (Figura 6b).     

 

Figura 4 – Em primeiro plano o binômio Soldado Gomes e  cão General no faro do  cadáver. Fonte: Jornal Repercussão (2021a)

 

Figura 5 – Trilha do cão General com o bombeiro. Aplicativo Wikiloc®

 

Figuras 6 – a) A escavadeira para retirar cadáver enterrado em cova funda. b) Equipes esperando  pelos peritos do Instituto Geral de Perícias (IGP). Fonte: Jornal Repercussão (2021b)

 

Com localização do corpo, o delegado encerra o inquérito de assassinato em Araricá, após dois meses de intenso trabalho da Polícia Civil, com cinco suspeitos presos e homicídio esclarecido. Importante destacar que a descoberta da vítima de assassinato permite à família fazer o sepultamento de seu ente querido. A busca ao corpo de pessoa vítima de homicídio pelo binômio bombeiro-cão repercutiu na comunidade e teve texto jornalístico de Costa (2021).

 

Discussão

 

Relatar ou comentar sobre a supremacia da capacidade odorífera de certas raças de cães treinados para a tarefa de buscar e recuperar evidências/corpos requer estratégias complexas, cooperação e um entendimento dos pontos fortes e fracos da contribuição potencial de cada membro da equipe. O cão precisa ser escolhido pelas características de personalidade, temperamento e comportamento. O seu companheiro de trabalho, handler ou binômio, no caso deste relato, um bombeiro militar se dedica ao treinamento respeitando o bem estar e as qualidades do cão para melhor moldar seu caráter e habilidade de encontrar corpos e/ou restos mortais. Ambos precisam estar prontos para as chamadas de trabalho.

Cada vez mais, a unidade de cães / tratadores de cadáveres faz parte de uma equipe de busca multidisciplinar, incluindo médicos legistas, antropólogos e membros da polícia, entre outros.

Um cão de trabalho deve ter resistência significativa, haja vista as condições de terreno, de clima, basicamente é o tempo que o binômio precisa estar focado. A resistência é tanto um resultado do cuidado dado a um cão quanto seus genes. Um cão que não é exercitado, ou está com sobrepeso e mal treinado, se sai mal. Deve-se afirmar, no entanto, que exercícios em excesso muito cedo podem resultar em problemas ósseos em muitas raças. Um cão com excesso de peso também pode ser vítima de problemas ósseos degenerativos, afetando severamente sua resistência à pesquisa de restos mortais, corroborando estudos de Rodrigues e Bass (1985) e Rebmann et al. (2000).

O cheiro do cadáver difere do cheiro ao vivo. É quimicamente genérico e não específico para um indivíduo. As reações químicas associadas à decomposição são essencialmente as mesmas em todos os corpos. O treinamento com peças de restos mortais familiariza e habilita o cão para esta tarefa (FORENSICS DIGEST, 2021).

Existem muitas barreiras que o cão supera para ter êxito na sua pesquisa de cadáver. As moléculas de cheiro são levadas pelo vento, o cadáver ou seus restos podem estar enterrados raso ou fundo, na água, em cavernas, dentro de embalagens fechadas e isso são barreiras pelas quais o cão supera com seu nariz.

Rebmann et al. (2000) limitam a capacidade de o cão encontrar restos humanos , se realmente eles estão naquele local (informação da investigação); se o condutor do cão o guia para a área correta; se o guia do cão não faz uma leitura correta do comportamento do cão. Não é exceção que o cadáver objeto de delito seja enterrado, desenterrado e realocado para outro local para atrapalhar a investigação.

Pelo lado do homem dedicado a esta tarefa, são requeridas várias características, como aptidão física, conhecimento teórico e prático forte no treinamento canino, gostar de cães, ter um bom vínculo com o seu parceiro e ter facilidade para trabalhar com outras equipes como policiais e equipes forenses  (ENSMINGER, 2011; GADBOIS; REEVE, 2014).

Portanto, o cão precisa reconhecer os odores cadavéricos que ocorrem durante os estágios de decomposição do corpo. Um cão bem treinado e um parceiro bem focado, estimulado e comprometido com o trabalho executarão a tarefa com excelência. Para se chegar a este resultado necessitou de treinamento diário do cão de 14 meses  que o habilitou a fazer  indicação  de corpos e restos mortais em qualquer estado de decomposição, inclusive restos esqueletizados. O cão General durante seu treinamento teve contato com gases/odores de 450 a 479 COV (Composto Orgânico Volátil) que são gases liberados durante a decomposição humana. O aprimoramento do cão é constante devido aos exercícios feitos no trabalho nos bombeiros e também na residência de seu condutor.

 

Conclusão

 

É inegável a importância do olfato canino na área forense com a habilidade extraordinária de cheirar separadamente com cada narina, que auxilia a determinar a direção de onde o cheiro vem e rapidamente o cão fica ciente do que está cheirando.  O cão General e o bombeiro especialista (condutor) solucionaram as buscas por um cadáver em um local não preciso na mata. A ocorrência levou ao encontro dos restos mortais da pessoa desaparecida e o encerramento do caso.

 

Conflitos de interesse

 

Não houve conflito de interesses dos autores.

 

Contribuição dos autores

 

Ambos os autores escolheram a proposta de trabalho para apresentar no curso de Especialização em Cinotecnia Policial – Projeto K9, das Faculdades Integradas IPEP, São Paulo, SP, em 2020-2021. O primeiro autor é responsável pelo relato de caso e o segundo autor, seu orientador (Médica Veterinária) foi responsável pelo referencial teórico, orientação, correções e revisão da obra.

 

Referências bibliográficas

 

AMORIM, A. Canídeos em contexto policial e forense. Aula apresentada ao Curso de Especialização em Ciências Médico-Legais do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto, 2014. https://sigarra.up.pt/icbas/pt/cur_geral.cur_view?pv_curso_id=1293

BROWEN, C.; STAFFORD, K.; FORDHAM, R. The use of scent-detection dogs. Irish Veterinary Journal, v. 59, n. 2, p. 97-104, 2006. https://www.researchgate.net/publication/261663456_The_use_of_scent-detection_dogs

CORREA, J. E. The  Dog’s  Sense  of  Smell. Alabama Cooperative Extension System – Alabama A & M University and Auburn University, UNP-0066, 2016. https://ssl.acesag.auburn.edu/pubs/docs/U/UNP-0066/UNP-0066-archive.pdf

COSTA, M. Polícia Civil localiza corpo e prende mais três em Araricá. Jornal Repercussão. 2021a. https://www.jornalrepercussao.com.br/policia/caso-natalino-policia-civil-localiza-corpo-e-prende-mais-tres-em-ararica

COSTA, M. Com localização de corpo em cova e mais três prisões, delegado encerra inquérito de assassinato em Araricá. Jornal Repercussão. 2021b. https://www.jornalrepercussao.com.br/policia/caso-natalino-policia-civil-localiza-corpo-e-prende-mais-tres-em-ararica

CRAVEN, B. A., PATERSON, E. G.; SETTLES, G. S. The fluid dynamics of canine olfaction: unique nasal airflow patterns as an explanation of macrosmia. Journal of the Royal Society Interface, v. 7, n. 47, p. 933-943, 2010. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2871809/

DENNIS, J. C.; ALLGIER, J. G.; DESOUZA, L. S.; EWARD, W. C.; MORRISON, E. E. Immunohistochemistry of the canine vomeronasal organ. Journal of Anatomy, v. 202, n. 6, p. 515-524, 2003. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/12846473/

ENSMINGER, J. J. Police and military dogs: criminal detection, forensic evidence, and judicial admissibility. 1st ed. CRC Press: Washington D.C. cap. 19, p. 245-259, 2011. https://www.amazon.com/Police-Military-Dogs-Detection-Admissibility-ebook/dp/B008RKMB0M?asin=B008RKMB0M&revisionId=&format=4&depth=1

FIEDLER, S.; GRAW, M. Decomposition of buried corpses, with special reference to   the formation of adipocere. Naturwissenschaften , n. 90, p. 291-300, 2003. https://doi.org/10.1007/s00114-003-0437-0

FORBES, S.; RUST, L.; TREBILCOCK, K.; PERRAULT, K.; MCGRATH, L. Effect of age and storage conditions on the volatile organic compound profile of blood. Forensic Science Medical Pathology,  v. 10, n. 4, p. 570-582, 2014. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/25351882/

FORENSICS DIGEST. Decomposition stages of human body. 2021. https://forensicsdigest.com/decomposition-stages-of-human-body/

FURTON, K. G.; MYERS, L. J. The scientific foundation and efficacy of the use of canines as chemical detectors for explosives. Talanta, v. 54, n. 3, p. 487-500, 2001. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/18968273/

GADBOIS, S.; REEVE, C. Canine olfaction: scent, sign, and situation. In: HOROWITZ, A. (ed.) Domestic dog cognition and behavior: the scientific study of Canis familiaris. Heidelberg, Springer, p. 3-29, 2014. https://www.semanticscholar.org/paper/Chapter-1-Canine-Olfaction-%3A-Scent-%2C-Sign-%2C-and-Gadbois-Reeve/be2a7a344c69dce35e4cafc84347112ada5b7f29

GAZIT, I.;  TERKEL, J. Explosives detection by sniffer dogs following strenuous physical activity. Applied  Animal  Behaviour  Science, v. 81, p. 149-161, 2003. http://pawsoflife-org.k9handleracademy.com/Library/Health/gazit.pdf

GENELHOUD, G. O uso de cães na área forense para identificação de odores humanos. 30p. Monografia (Bacharel em Ciências Biológicas).  Universidade do Paraná, Curitiba. 2017. https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/65753

GROVERS MILL. The Truth About Cadaver Dogs: 5 Things You Didn’t Know. 2018. https://medium.com/@groversmill/the-truth-about-cadaver-dogs-5-things-you-didnt-know-a53344a43ee7

GREENBERG, G.;  HARAWAY, M. M. Comparative Psychology: A Handbook. New York: Garland Publishing, 1998, 903p.

HAMKER, A. Bettwanzen-Spürhunde-Team Leipzig. 2021. https://www.bettwanzen-spuerhunde-team.de/warum-sp%C3%BCrhunde/

LOBÃO, A. O. Animais de Companhia – os sentidos do cão. 1992. https://www.yumpu.com/pt/document/view/12981515/animais-de-companhia-os-sentidos-do-cao-cesaho

PRADA, P.; CURRAN, A.; FURTON, K.  Human scent evidence. CRC Press: Washington D.C. 2015, 240p.

REBMANN, A.; DAVID, E.; SORG, M. Cadaver dog handbook: forensic training and tactics for the recovery of human remains. CRC Press: Washington D.C. 2000, 203p.

RODRIGUES, W. C.; BASS,  W. M. Decomposition of buried bodies and methods that may aid in their location. Journal of Forensic Science, v. 30, n. 3, p. 836-852, 1985. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/4031811/

REECE, W. O. Fisiologia dos Animais Domésticos. 12ª ed. Guanabara Koogan: Rio de Janeiro, 2006, 926p.

ROMANES, G. J. Experiments on the sense of smell in dogs. Zoological Journal of the Linnean Society, v. 20, n. 117, p. 65-70, 1887. https://doi.org/10.1111/j.1096-3642.1887.tb01437.x

SCHOON, A. The effect of aging on crime scene objects on the results of scent identification line-ups using trained dogs. Forensic Science International, v. 147, n. 1, p. 43-47, 2005. https://www.researchgate.net/publication/8184577_The_effect_of_aging_on_crime_scene_objects_on_the_results_of_scent_identification_line-ups_using_trained_dogs

SJAASTAO, O. V.; SAND, O.; HOVE, K. Phisiology  of  Domestic  Animals. 2nd ed., Oslo: Scandinavian Veterinary Press, 2010, 804p. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3659450/

SOBEL, N.; PRABHAKARAN, V.; DESMOND, J. E.; GLOVER, G. H.; GOODE, R. L.; SULLIVAN, E. V.; GABRIELI, J. D. Sniffing and smelling: separate subsystems in the human olfactory cortex. Nature, v. 392, p. 282-286, 1998. https://www.nature.com/nature/volumes/392

UELAND, M.; SCOTT, H.; FORBES, L. Detecting volatile organic compounds to locate human remains in a simulated collapsed building. Forensic Science International, v. 323, 2021. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/33878551/#:~:text=17%3B323%3A110781.%20doi%3A-,10.1016/j.forsciint.2021.110781.,-Epub%20ahead%20of

VASS, A. A.; SMITH, R. R.;  THOMPSON, C. V.; BURNETT, M. N.; DULGERIAN, D.;  ECKENRODE, B. A. Odor analysis of decomposing buried human remains. Journal of Forensic Sciences,  v. 53, n. 2, p. 384-391, 2008. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1556-4029.2008.00680.x

 

 

Recebido em 18 de outubro de 2021

Retornado para ajustes em 18 de janeiro de 2022

Recebido com ajustes em 19  de janeiro de 2022

Aceito em 20 de janeiro de 2022